Relato da jornalista Paula Batista, que desbravou o Monte Roraima com a Salto Alto Montanhismo em novembro de 2018. As partes I, II , III, IV e V dessa história já foram publicadas. Vamos passar a virada do ano 2019/2020 nessa montanha sagrada. Reserve sua vaga aqui.
Eduardo já sabia que eu descia bem. Na subida eu me enrolo, mas na descida, eu mando muito bem. Essa era a minha fama e que eu teria que provar. Acho que o Javier não acreditou muito nisso, ou desconfiou que com o pé machucado isso não seria provado. Combinou com o Eduardo que não esperaríamos eles na base na descida, que começaríamos antes.
Assim foi. Iniciamos a descida às 9h da manhã. Eu, de tênis, com o pé todo protegido e disposta a acompanhar o ritmo dos carregadores. Todo mundo diz que a gente não deve tentar acompanhar os carregadores, mas olha, na descida, eu me dou muito bem com eles. Fizemos duas paradas rápidas, uma para o Eduardo pegar água, no Militar, e outra para ele descansar as costas, já que estava carregando uns 50 quilos.
Chegamos meia hora antes do que o Eduardo previa que chegaríamos se eu fosse bem. Paramos num acampamento logo depois do Rio Tek e ficamos esperando o restante do grupo que desceria 21 km. Inclusive ficamos ali combinando piadas para zoar com eles, tipo: “muy lentos, muy lentos chicos”.
Passamos a tarde conversando e mais e mais costumes eu fui aprendendo. Eduardo me contou que quando as meninas completam 11 ou 12 anos na aldeia e iniciam o ciclo menstrual, pela primeira vez, elas ficam em casa por três meses. É feito uma benção e um ritual especial para protegê-las do mal. Aí ele também me conta que as mulheres, quando estão menstruando, não tomam banho direto no rio, pegam água em recipientes e se banham fora. E eu perguntei porque, claro. Ele me disse que lá em cima, no cume, quando uma mulher está no ciclo e entra na jacuze ou nas piscinas a montanha fica extremamente nervosa, brava e irritada. O resultado são as fortes chuvas que atingem a base. Logo que ele disse isso eu pensei: que droga, eu devia ter avisado as meninas. A chuva de ontem foi muito, muito forte. E eu sabia que tinha uma culpada =)
Como a gente está em uma terra sagrada, precisa aprender os costumes e a cultura para não errar ou fazer algo que desagrade. Eu perguntei ao Eduardo se havia nascido o filho ou filha do Mário, nosso outro colega da equipe da trip, que desceu correndo da base quando ouvi no rádio alguém dizer que sua mulher estava em trabalho de parto, na comunidade. Seria uma belezura termos um bebê nascendo no meio da nossa trip. Algo a se comemorar. Saímos de lá sem saber se a criança nasceu naqueles dias, porque o homem, quando nasce o filho, fica trancado em casa até o umbigo da criança cair. Não pode sair, fazer esforço, tomar sol ou chuva. Precisa ficar em casa.
Uma conversa emenda em outra e mostro ao Eduardo um arco-íris, dizendo: “olha que bonito” (aqui você imagine aquele smile batendo a mão na cara). Eles não acham bonito. Eles acreditam que os arco-íris (öicömun) são fontes do mal, que quando eles aparecem podem causar mal olhado nas pessoas. Eu, fiquei sem entender essa. Pedi que ele me explicasse. Segundo ele, o arco-íris roubou as cores de uma grande serpente-dragão que vive entre o Monte Kukenán e o Roraima, bem no meio (perto da ventana). Essa serpente gigante aparece para as pessoas com a metade humana, metade réptil. E quem olha para ela morre. Como ela não consegue enganar muita gente, ela criou o arco-íris. As pessoas olham para ele e desejam coisas ruins para uma outra pessoa, que fica doente, não consegue se curar e médico nenhum consegue tratar. Precisa ir para um xamã tentar curar. E me conta o caso de um dos carregadores que conheci, que olhou pro arco-íris e machucou a perna e demorou muito, muito, muito para conseguir se curar com a ajuda das ervas e preces do xamã.
Curiosa perguntei mais sobre a cobra gigante. Ele me contou a história. No meio das montanhas, num local até então inacessível, contam de geração para geração que havia uma grande serpente-dragão vivendo entre as duas montanhas. Alguns indígenas começaram a sumir e logo descobriram que a cobra gigante estava comendo quem se aventurava pelas montanhas. Decidiram investir na produção de uma grande arma para matar a serpente. E assim fizeram. Logo descobriram que essa serpente era o pai, havia a mãe, que também foi morta e a filha. Restando a mais jovem, os índios fizeram um acordo com ela: eles não iriam mais para aquela área e ela não comeria mais os índios. E assim foi. Depois de um tempo, um dos indígenas estava tentando caçar, sem sucesso. Com fome e desesperado para arrumar comida para a sua família, ele parou num dos rios e viu uma linda mulher nas águas. Não conseguia ver seu corpo inteiro, mas via até o quadril. Era bonita. Ela perguntou a ele o que lhe entristecia e ele disse que não havia conseguido nenhum animal para alimentar sua família. Ela lhe perguntou qual ele queria, ele disse que qualquer um: um veado, um porco ou qualquer outro animal grande. Ela lhe pediu para estar ali no outro dia, naquele horário, que eles se veriam de novo. Noutro dia, ele saiu da comunidade e não contou para ninguém, mas foi encontrá-la. Chegando lá encontrou os animais que precisava e ela disse que era um presente para ele levar para casa. Feliz, ele assim foi para casa carregando os alimentos. Não contou para ninguém como havia conseguido. Mais um dia e ele volta ao rio para procurá-la. Não a encontra. Decide se embrenhar na mata para procurá-la. Encontra uma caverna onde há uma casa com tudo dentro, inclusive, comida, e lá encontra a linda mulher que lhe mostra como é realmente: metade mulher, metade cobra. Ele diz que não se importa, que gostava dela mesmo assim e que queria ficar com ela. Ela disse que, para isso, ele precisava também assumir a mesma forma que ela, foi a um quarto e mostrou seus pais. Tirou a cauda do pai e deu a ele, que deveria colocá-la e nunca mais poderia tirar, mas, assim, ficariam juntos para sempre. Ele escolheu ficar com ela e nunca mais voltou para casa. Na comunidade, preocupados, começaram a procurá-lo. Quando encontraram, ele estava com a serpente, que disse que não poderia voltar, já que havia decidido ficar com ela para sempre. Sem aceitar muito bem, os indígenas queriam matá-la, mas, para isso, também precisariam matar o rapaz. Fizeram um novo acordo. Ele nunca mais voltaria para casa, mas eles teriam que se mudar para outro lugar e não mais atacar os indígenas da aldeia. Assim foi combinado e as duas serpentes deram o nome para três tepuis da região: Urutepui (uru = nome da cobra), Carauritepui e Tramentepui (todos os nomes das cobras da região).
Fim das histórias, chegada do restante da equipe. Nosso almoço virou um grande jantar com direito a feijoada (sim, podem sentir inveja), vinho, purê de batatas, arroz, salada de cenoura e repolho e frango assado. E mais chuva nos levou para as barracas pós-jantar para dormir cedo.
Eu escondia um segredo: Eduardo havia feito um bolo de aniversário para a Ana Carolina. Com a chuva, a comemoração seria no dia seguinte. E ficou a curiosidade de como ele consegue fazer um bolo sem forno e ainda fazê-lo crescer. Isso eu não consegui descobrir. Ele escondeu esse segredo e disse que me contará na próxima vez que eu aparecer por lá.