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[Parte II] Dia 1: Roraimo e Canaima

Relato da jornalista Paula Batista, que desbravou o Monte Roraima com a Salto Alto Montanhismo em novembro de 2018. Se você perdeu a parte I dessa história, confira aqui. Vamos passar a virada do ano 2019/2020 nessa montanha sagrada. Reserve sua vaga aqui.

Grupo incrível que caminhou junto

No primeiro dia da nossa trip em solo venezuelano, Javier nos encontrou na pousada em Santa Helena bem cedo. Inclusive ele chegou 15 minutos mais cedo. Com ele estava o senhor Cezar, motorista de uma 4×4 amarela muito maneira, e mais dois integrantes do nosso grupo, um casal de simpáticos venezuelanos, Gabriel e Joli.

Embarcamos rumo aos 90 km até a entrada do Parque Nacional de Canaima, criado em 1962 e referenciado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1994. Um caminho lindo, com metade asfalto e uma parte de estrada de chão, que requer um motorista com muito talento e braços, como é o caso do Cezar, que nos levou até a comunidade de Paraitepui (parai = sandálias; tepui: montanhas).

Ali em Paraitepui encontramos o restante da equipe que nos acompanharia em todo o trajeto, os indígenas da comunidade. Homens, mulheres, jovens. Impressionante a força e a resistência dessas pessoas, que trabalham como carregadores (equipamentos, mochilas, comida) e também são os responsáveis pela montagem das barracas, por fazer a comida e ainda manter os montanhistas seguros (contarei um pouco da história e da cultura dos paraitepuis logo mais).

Avistar os tepuis durante todo o caminho é encorajador

Saímos da comunidade no final da manhã: 13h30 é o último horário para começar a subida. Chegar à comunidade após esse horário é ter que esperar até o próximo dia para poder começar a trilha. Nós conseguimos e começamos a trilha com sol a pino. Protetor solar, bonés, roupas mais leves, nada disso importa diante do intenso calor e quase nada de vegetação alta que possa dar um respiro. Esse foi um dia bastante longo, com 14 km de andanças até chegarmos a uma área de acampamento após o Rio Tek, cheio de pedras escorregadias, mas nada impossível.

O belíssimo rio Tek, que desce em meio ao Kukenán e o Roraima

Nesse local fechamos nosso primeiro dia, com um banho no rio, um céu estrelado lindo e um jantar especial, com arroz, salada, purê de batatas e frango salteado com ají (pimenta), com direito a café quentinho e chás antes de dormir.

Jantar e café da manhã à beira do Rio Tek

Curiosidades da cultura dos Paraitepuis

Canaima

Foi o nome dado pelos governantes ao parque, mas os indígenas não gostam de maneira alguma. Para a cultura deles, Canaima é um deus, um espírito do mal, responsável por causar todos os males que afetam os indígenas. É um espírito temido por eles. Inclusive, acreditam ainda hoje, que o Canaima é o responsável por alguns fatos estranhos que acontecem ali, como me contou o Eduardo Casado, que mora na comunidade em Paraitepui há 20 anos, desde que casou com uma indígena da aldeia.

Ele me diz que há três meses (antes de novembro de 2018) uma moça entrou numa caverna no Roraima e não conseguiu sair. Quando a encontraram, alguns minutos depois, ela não estava em sã consciência mais, dava sinais de loucura, agressividade e não falava mais. Foi resgatada e preciso ser levada para baixo da montanha pelos indígenas, amarrada. Eduardo ainda me disse que esse tipo de coisa não adianta levar ao médico, pois médico nenhum cura, é preciso encontrar um xamã para tentar um tratamento espiritual.

Por isso mesmo, ninguém fica acampando sozinho no parque, nem sobe, nem se aventura à noite por lá sem companhia. Outro medo é que os aventureiros fiquem sozinhos e que ao verem a luz ou o reflexo do Canaima entrem na luz e desapareçam.

Monte Roraima ou Röröimö

Para os parateipuis é Roraimo (fala-se Roraimô), Roraima é mais fácil para os aventureiros falarem. Roroi significa pátio verde e “ma” significa grande. Roraimo = verde azulado. Tepui significa “casa dos espíritos”. Ou seja, nossa querida montanha é sagrada, é a grande casa dos espíritos azul e verde. Verde pela vegetação e azul pelo deslumbrante céu.

Na região da Gran Sabana, onde fica o Monte Roraima, há cerca de 115 tepuis, mas ela é a mais alta da cadeia de montanhas, e é dividida entre Venezuela, Brasil e Guiana, nessa proporção. Sua base é de rochas arenitas e é uma das formações mais antigas do planeta, com cerca de dois bilhões de anos (período pré-cambriano) e tem, como extensão, algo em torno de 35 km de um lado a outro. O ponto mais alto do Monte é o Maverick (como aquele carro antigo), a 2.810 metros.

Chove quase todos os dias do ano por lá (menos nos dias em que nosso grupo esteve por lá, o que nos encheu de alegria). Os indígenas veem o Monte como o tronco da árvore da vida, que já teve todas as frutas e hortaliças do mundo, que foi derrubada por Makunaíma, um mítico malandro.

Abre aspas: Makunaíma e a árvore da vida

Tepui estreito ao fundo hoje também chamado de Árvore da Vida, pelo seu formato

Na estrada, chegando ao Parque Canaima, você já vê a imensa beleza das cadeias de tepuis. Um deles é a “Árvore da Vida”, que é uma rocha intransponível hoje para os montanhistas. Apenas exímios escaladores conseguiriam escalá-la e, mesmo assim, com dificuldades. Mas essa não é a melhor parte da história. O paraitepui Eduardo me conta a história dessa montanha.

Há muitos e muitos anos três irmãos passavam fome e sede. Nada para comer ou beber na região. Um deles, Makunaíma, saiu para procurar comida e voltou horas depois. Seus irmãos perguntaram se ele havia achado algo e, malandramente, ele não contou que havia encontrado uma árvore imensa, na qual havia todo tipo de comida: frutas, verduras, legumes, cereais e água pura e fresca. Se empanturrou, mas não contou aos irmãos, que ficaram com fome.

No dia seguinte, Makunaíma sai novamente com a desculpa de procurar comida. Passa o dia se alimentando e, mais uma vez, não conta para os irmãos que havia encontrado. Desconfiados, os irmãos resolvem segui-lo no dia seguinte. Makunaíma tenta se livrar dos irmãos, tentando despistá-los no caminho. Não conseguiu. Eles encontraram a árvore, os alimentos e o irmão malandro desfrutando de tudo enquanto eles passavam fome e sede. Correm para se alimentar e, com isso, todo o alimento da parte mais baixa da árvore acaba rapidamente.

Sem saber como conseguir pegar os alimentos dos locais mais altos, eles decidem cortar a grande árvore. Dias e mais dias com dificuldade em cortá-la, cada um, com sua pedra, começa a cortar de um lado. O primeiro lado a cair é onde está o majestoso e incrível Monte Kukenán (montanha masculina), o segundo é onde está o Monte Roraima (montanha hembra, feminina). Diz a lenda que a outra parte do tronco caiu em uma região que se estende até a Amazônia brasileira e não se sabe até onde vai sua extensão, mas eles acreditam que ali exista um portal sobrenatural, bem como no Kukenán e também no Roraima.

O intimidador Kukenán

Kukenán à frente e o Monte Roraima, à direita

O Monte Kukenán (suicídio ou também quem subir morre) é sagrado para os indígenas e envolve muitas e muitas lendas, curiosidades e medos em quem vive ali e até para aqueles que resolvem se aventurar e encarar a subida (que é restrita, devido aos perigos que envolve). Para os indígenas, os perigos nem são tão grandes, basta ir com eles que conhecem o local, o problema ali são os espíritos. Tem 2.650 metros de altura e fica ao lado do Monte Roraima, é a montanha masculina. Tem uma queda d´água lindíssima chamada de Salto Kukenán, com 674 metros de altura, na parte sul do tepui.

Alguns relatos locais dizem que na tentativa de alcançar o seu cume, muitos viajantes morreram, motivo que levou à proibição das atividades de escalada no lugar, desde 1997. Segundo lendas indígenas, o monte guarda os espíritos dos índios guerreiros que eram jogados do alto, após serem derrotados por tribos rivais, em conflitos pela posse das terras da região. Esses espíritos que habitam a montanha, ao terem sua ira despertada, são responsáveis pelos desaparecimentos dos inúmeros turistas que ousaram incomodá-los.

Mas o paraitepui Eduardo me contou uma história diferente. Segundo ele, um indígena-guerreiro poderoso da região saia para caçar várias vezes na semana. Deixava sua esposa em casa e mal sabia ele que ela se engraçava com outro homem. Um dia, tendo esquecido seus apetrechos para a caça em casa, voltou e encontrou a mulher com o outro homem. Não falou nada, mas saiu de casa rumo à montanha, à qual escalou. Não voltando para casa, sua mulher começa a pedir ajuda para encontrá-lo. Seguem os rastros até a montanha, quando o encontra à beira do abismo. Estando lá, ela implora que ele não pule. Ele pede que ela não se aproxime senão pularia. Ao tentar detê-lo, ele pula e assim a montanha recebeu o nome de “matadai” (vou me suicidar) ou Matawi-Kukenán (local de suicídio). Após, o local passou a ser usado para matar os guerreiros inimigos, cujos espíritos estão por ali até hoje.

Há 20 anos, dois irmãos resolveram subir o Kukenán, uma moça e um rapaz. Ele desapareceu misteriosamente e só a sua irmã conseguiu descer. Depois de dias de buscas, as autoridades desistiram da procura, já que nem sequer o corpo foi encontrado. A partir daí, resolveram levar um xamã até o cume do Kukenán, que levou uma vela e fez orações e foi quando viu que o corpo do rapaz estava dentro da montanha, que o havia engolido e sugado toda a sua energia. Seria impossível resgatar o seu corpo.

Há 16 anos, um grupo de guias e indígenas da região se reuniu para subir o Kukenán e testar a trilha para visitação. Eduardo estava nesse grupo e me contou que um dos guias sumiu de noite. Os demais se reuniram para tentar encontrá-lo, chamaram de todas as formas. Reuniram as lanternas e foram marcando o caminho para não se perder, até que chegaram a uma das piscinas no cume, onde encontraram o guia na água, já no peito. O retiraram da água. Parecia que ele estava em transe. Quando acordou contou que seguia uma luz que o chamava para entrar no portal. Ele foi salvo pelos seus companheiros.

Pode-se subir o Kukenán, de 12 a 16 dias, com uma autorização especial da direção do parque, com os indígenas e guias especializados, mas pouca gente se arrisca nessa tentativa. Recentemente, um grupo de montanhistas japoneses encarou e conseguiu concluir o desafio, com dificuldades, mas sem incidentes.

…continua na próxima semana…

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