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Parte V – Dia 04: O assustador som da natureza

Relato da jornalista Paula Batista, que desbravou o Monte Roraima com a Salto Alto Montanhismo em novembro de 2018. As partes I, II , III e IV dessa história já foram publicadas. Vamos passar a virada do ano 2019/2020 nessa montanha sagrada. Reserve sua vaga aqui.

Pedra Maverick, o ponto mais alto do Monte Roraima

Eu gosto de escutar as montanhas de noite. Elas têm um som incrível e sempre inesperado. Geralmente, de uma beleza incrível e encantadora. Meu quarto dia na base, com o grupo no segundo dia no cume. O dia amanheceu fechado. No café da manhã, mais tarde, às 8h, para eu poder dormir e descansar de não fazer nada, Eduardo fez “arepas” e eu curiosa pedi para ele me ensinar. Resumindo, é um pequeno “pãozinho” feito com massa de polenta branca, água e sal. Ele dá o formato redondo, mais fininho e assa na chapa de pedra quente no mini fogareiro à querosene. Um empenho. Quando termina, abre no meio e vira um pãozinho que abriga ovos mexidos, queijo ou embutido. Falei para ele sobre a polenta feita em Santa Felicidade e combinamos que, na minha próxima ida para lá, vamos testar a polenta. Também falei da quirera. Também conversamos sobre a Tapioca. Da tapioca falamos sobre a mandioca-braba, que deve ser usada com muito cuidado, para fazer os bijus, a farinha e a massa da tapioca. Mas eu terminei dizendo: conta aí, você aprendeu fazer tapioca com os brasileiros, não é mesmo? Ele confessou que sim.

Paula, Vivi, Ana Carolina, a aniversariante, e Eduardo, nosso Chef , que fez esse delicioso bolo recheado para celebrar, no acampamento

            Saímos da comida para as plantações e cultivos deles na comunidade: banana, milho, mandioca e um pouco de arroz. Só. Não dá para plantar mais nada, ele me explica. Inclusive, contando a história da separação da Árvore da vida. O lado de cá só aceita o cultivo dessas espécies e também não dá para criar animais, como cavalos, bois, ovelhas ou outros animais, já que não tem pasto ou comida para eles.

            Esperava que abrisse o tempo às 11h da manhã. Já sabia como as nuvens se moviam e os horários de visibilidade do Roraima e do Kukenán. Nada disso. As nuvens de chuva começaram a se deslocar. Eduardo resolveu montar uma segunda barraca, grandona, para deixarmos preparada para o grupo que desceria no dia seguinte, para que pudessem ter uma refeição confortável e um tempo de descanso protegidos da chuva ou do sol.

A barraca marrom é o abrigo montado por Eduardo e Paula

            Vendo Eduardo tentando montar sozinho uma barraca gigante, me ofereci para ajudar ou atrapalhar. Vai saber. No fim, ajudei. Faltavam peças para montar, usamos um bastão de caminha para resolver o problema. E, sério, ficou incrível e preparada para os amigos. Demoramos só quase duas horas para conseguir terminar a montagem feita bem em cima de uma mesa indígena feita de pedras. Ideia sensacional.

            Começou a chover e eu fui para a barraca. Eduardo foi fazer o almoço, macarrão com molho branco. Fala sério, aprendi a fazer o molho com o índio na Venezuela. Pois é. Ele entregou alguns segredos, outros não. Chuva. Mais gente chegando na base no meio de uma forte chuva. Eduardo, gentil dava café quente para todos os que apareciam ali, simpáticos, para cumprimentá-lo (quem não foi simpático não ganhou café, fica a dica!).

Enquanto isso parte do grupo estava lá no alto dos paredões

            A chuva deu uma trégua e fui para a minha pedra do fim do dia. Eduardo chegou com água quente e um saquinho de chá de hortelã, que ele já sabia que era o meu preferido. Iniciamos um novo papo sobre a cultura e costumes da aldeia. Como foi a experiência dele em subir o Kukenán, o que sentiu, a força que o impedia de chegar e, depois que fez as suas orações, quando terminou, quase o empurrou para fora. Ele me diz: “Paula, eu senti a força no meu corpo”. Pois é. Ele conseguiu o respeito dos espíritos e hoje pode subir a montanha. Mas sempre precisa se preparar. Disse que eu conseguiria subir sem a cargueira, mas precisaríamos combinar, pelo menos, uns três meses antes, para nos prepararmos para essa subida, tem as orações, o encontro dele com o xamã e o pedido de permissão para os espíritos. Disse a ele que um dia faremos, pois essa é desafiadora.

O imponente Kukenán à esquerda do Monte Roraima

            Uns paulistas de Batatais chegaram na base. Começaram a montar suas barracas, arrumar as coisas e me perguntaram onde era o rio para tomar banho. Eu expliquei e avisei: melhor ir rápido, porque quanto mais vocês demorarem, mais fria a água vai ficar e ela já era muito fria. Eles não levaram o conselho a sério. Se enrolaram um bocado, até que, na pedra do fim do dia, eu e o Eduardo escutamos pessoas gritando ao entrar na água. Rimos e eu ensinei para ele mais um ditado brasileiro: “quando a cabeça não pensa o corpo padece”.

            Volta a chover e a partir daí não para mais. Dentro da barraca encaro muita, muita, muita chuva e ventos fortes. Um grande teste para a barraca nova da Viviane, que ficou comigo na base. Fiquei meio preocupada da barraca se deslocar com o vento. Coloquei minha cargueira pesada de um lado, um monte de coisas de outro, fiquei deitada no meio e assim, com o peso, em cada lado, mais tranquila de que a minha casa momentânea resistisse à tempestade. Resolvi tentar dormir. Na barraca ao lado um dos paulistas diz: “meu senhor, acho que vou morrer de frio”. Ele estava dramatizando. Não estava frio, mas a chuva começava a ficar incrivelmente forte e mais forte.

            A cada pausa da chuva vinha um som assustador e aterrorizante, como se uma enxurrada de água fosse nos encontrar na base e levar as barracas e todos nós junto com ela. Nada disso, esse era o som das águas encharcando as cachoeiras que estavam secas pela ausência de chuvas nos últimos dias. Assim foi a madrugada toda. O incrível som da montanha foi tão impressionante que precisei colocar fones de ouvido e música para tentar dormir umas duas horas. Uma das experiências mais incríveis que já vivenciei nas montanhas.

O grupo admirando e reverenciando os gigantes Kukenán e Monte Roraima

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